Ksar el Kebir

 

 

Em Ksar el-Kebir, a norte de Marrocos um exército de invasão Português enfrentou circunstâncias avassaladoras. O Rei tinha arriscado tudo - um exército, uma dinastia e um império - no seu próprio destino.

 

Dom Sebastião, o Rei de Portugal, então com vinte e quatro anos, levantou-se cedo na manhã do dia 4 de Agosto de 1578. Sob a tenda acetinada estava inquieto enquanto o vestiam com a sua armadura, por cima da qual foi colocada a túnica de pele para o proteger do calor intenso do sol. Lá fora, o ruído do campo, alto e indistinto aumentava pois o exército também se preparava para a batalha. Nas colinas sobranceiras, o exército marroquino também se agitava. Para Dom Sebastião a luta que se iria seguir foi o fruto do seu trabalho e a culminação de meses da atribulação pessoal. A vitória ansiada, caso acontecesse, iria cobri-lo de honra tal como ele tinha imaginado durante toda a sua jovem vida.

 

Dom Sebastião nasceu em Lisboa no dia 20 de Julho de 1554 durante o reino do seu avô, o Rei João III. Desde o início, a vida de Sebastião teve sempre contornos pouco auspiciosos. A morte do seu pai, dezoito dias antes do seu nascimento, deixou-o como o único herdeiro da Casa de Avis. Os seus súbditos olhavam a criança cândida de cabelo de ouro como a salvação do trono, que de outra forma passaria para a eterna némesis de Portugal: Espanha. Filipe II, Rei da Espanha, era sobrinho de João III e por isso um potencial pretendente ao trono português. Quando João III morreu em 1557, o tio-avô de Dom Sebastião, o cardeal Henrique foi nomeado regente até ao ano de 1568, altura em que o jovem então com catorze anos de idade, subiu ao trono como Sebastião I. [1]

 

O império português que ele herdou foi uma vasta rede de fortes costeiros que mantinham abertas as rotas para os entrepostos comerciais que se estendiam desde o oceano Índico passando por África, Sumatra, Sudeste da Ásia, China, Japão e Brasil. A sua expansão sugeria uma vitalidade que era enganadora. Portugal era um império comercial, e o seu poder dependia da sua frota. Pobre demograficamente (estimado em 1 milhão de almas em 1580, numa altura em que a França continha 16 milhões, a Itália 13 milhões, e a Espanha 8 milhões), Portugal não podia colonizar as suas posses. O império assentava em pontos fortes costeiros, cuja segurança era largamente dependente de alianças com clãs-chave e tribos do interior. Além disso, enquanto o império ganhou muito, a sua prosperidade beneficiou poucos. A estrutura social feudal perdurou, com o rei como poder absoluto da terra. [2]

 

As limitações do poder português foram evidentes na sua luta com Marrocos. Portugal, que tinha expulsado os mouros em 1249, lançou a primeira cruzada ibérica por terras do Norte de África com captura de Ceuta em 1415. Enquanto a razão central foi proteger o litoral marroquino contra a ameaça constante de corsários, o encorajamento Papal e a descoberta de ouro no Magrebe incentivaram o esforço. Em 1513, os portugueses tinham capturado todos os principais portos marroquinos na costa Atlântica, de Tânger a Agadir. Espanha, juntou-se à caça em 1494, tomando Melilla e outras cidades marítimas ao longo da costa Mediterrânea de Marrocos. Nessa altura Marrocos atravessava mais um período de tumulto inter-dinástico. Os sultões Wattasi reinantes, governando uma monarquia que tinha encolhido até pouco mais da cidade de Fez e seus arredores, preferiram chegar a acordo com os invasores. As rivalidades tribais e poderosas ordens de Sufi mantiveram o país fragmentado e cada lado tinha as suas questões práticas: os Cristãos enriqueciam-se pelo mar e os muçulmanos pelo comércio das caravanas trans-saarianas. [3]

Era um equilíbrio de poder delicado. Quando em 1508 Portugal começou a interferir com as caravanas comerciais o equilíbrio desfez-se, fornecendo ímpeto à unidade dos muçulmanos. No sul, nas montanhas do Alto Atlas, estalou uma revolta que cresceu à medida que as tribos se foram unindo sob a liderança do Sheik Mohammed, membro do clã Beni Saad. Os Sádidas, como vieram a ser denominados, estabeleceram a sua capital em Marraquexe em 1525. Em 1549 já tinham deposto os Wattasi e unido Marrocos. Nos poucos anos que se seguiram os Saadidas virariam a maré contra os portugueses, culminando com a recaptura de Agadir em 1541. A breve trecho os portugueses evacuariam a maior parte das suas possessões no litoral de Marrocos, mantendo apenas Mazagão, Tânger e Ceuta.[4]

 

Dom Sebastião cresceu na amargura que se seguiu à vitória Saadida, e os seus anos de formação moldaram-no para a Cruzada. A educação Jesuíta e intermináveis horas dedicadas ao galante manejo de armas, deixaram a sua marca no jovem descrito como “impulsivo, excitável e quimérico” [5]. O jovem Rei imaginava-se a si próprio como um grande guerreiro Cristão.

 

Marrocos, um velho campo de batalhas, viria a ser como o farol desse destino. Fraco e fragmentado naquele tempo, o país permanecia independente apesar das preocupações dos seus mais poderosos vizinhos. Os estados Ibéricos estavam empenhados em impérios nas Américas e nas Índias, os Otomanos estavam presos em lutas desgastantes no Mediterrâneo Oriental, nos Balcãs e na Pérsia. Estas circunstâncias permitiram a elevação dos Saadidas, mantendo estes a sua autonomia jogando as facções umas contra as outras.[6]

 

Uma crise dinástica prolongada serviu de catalisador à intervenção estrangeira em Marrocos bem como à campanha que iria culminar na planície de Ksar el-Kebir. Esta iria começar quando o governante Saadida, Al-Ghalib, nomeou o seu filho, Moulay Mohammed, como herdeiro do trono em vez do seu próprio irmão mais velho, como era exigido pela tradição. O sultão nomeado tentou de seguida liquidar os seus três irmãos. Evadindo-se àqueles que poderiam vir a ser os seus assassinos, os irmãos escaparam para a Argélia procurando abrigo nas terras Otomanas. A crise foi de certo modo empatada visto os pretendentes terem cortejado primeiro o apoio dos Espanhóis e só de seguida o Otomano. Finalmente, em 1575, o demandante sobrevivente mais velho, Abdelmalek, regressou do exílio com um exército Turco e conquistou Fez. Molay Mohammed, que nessa altura já havia sucedido ao seu pai como sultão, fugiu para as montanhas do Atlas.[7]

 

Abdelmalek é uma figura que merece destaque embora tenho sido de certa forma esquecida. Ele saiu demasiado novo para ser recordado pelo seu reino e nenhuma imagem sua sobreviveu. Aquilo que sabemos dele sugere um líder de raras qualidades. Com quinze anos na altura em que fugiu para a Argélia, passou os seus dezoito anos seguintes no exílio. Esse tempo não foi desperdiçado. Abdelmalek, viajou pelo Mediterrâneo, aprendendo a linguagem e os costumes dos povos com quem contactou. Chegou a falar fluentemente Italiano, Espanhol e Turco. As suas visitas pelas terras Otomanas ensinaram-lhe a apreciar o exército Turco bem como as armas de fogo, artilharia e técnicas modernas de combate. Durante vários períodos serviu na marinha Otomana, o último dos quais em 1571 quando, na batalha do Lepanto, foi feito prisioneiro. Durante o seu curto período como cativo em Orão, Abdelmalek iniciou conversações com potências estrangeiras para tentar obter suporte para reclamar o reino que era seu por direito. Apesar de infrutíferos, esses esforços diplomáticos de Abdelmalek impressionaram todos aqueles com quem contactou, tanto Cristãos como Muçulmanos.[8]

 

Finalmente reclamando o seu trono, o novo sultão teria pouco tempo para consolidar o seu poder. A aparição de exército Otomano em Marrocos provocou grandes preocupações nas cortes de Madrid e Lisboa. Para Dom Sebastião esta era a sua longa e ansiada oportunidade. Imediatamente propôs ao seu tio, Filipe II, uma expedição conjunta para auxiliar o Moulay Mohammed. O Rei de Espanha, sempre circunspecto, e vendo em Abdelmalek um sultão “diferente dos outros”, preferiu observar À medida que a situação evoluía.[9]

 

A prudência de Filipe não era sem fundamento. Embora Abdelmalek admirasse os Turcos, estava bem ciente das suas ambições e da ameaça que eles simbolizavam. Alguns anos antes, agentes Otomanos haviam assassinado o seu pai, o Sultão Mohammed ech-Cheikh, quando este se mostrou imanobrável. Havia apenas requerido a sua ajuda militar como último recurso, e tinha prometido bastante por ela – 500,000 onças de ouro, o porto da cidade de Larache como importante base atlântica para os corsários Argelinos, e assinado uma aliança contra Espanha. Contudo, o novo sultão Saadida, não tinha qualquer intenção de se tornar num vassalo Otomano. Logo após a sua vitória, Abdelmalek, pagou aos seus Janísseros mandando-os educadamente de volta à Argélia. Larache não permaneceria apenas Marroquina, como também Abdelmalek em breve iniciaria aberturas com Espanha para negociar uma aliança defensiva contra os seus patrocinadores Otomanos.[10]

 

Infelizmente, a incapacidade de capturar o seu rival desfez a maior parte dos seus esforços diplomáticos. Enquanto os seus esforços aplacaram Madrid, que estava ansiosa para voltar as suas atenções para a revolta na Holanda , Dom Sebastião não seria tão facilmente satisfeito. Ele continuaria a procurar pretextos para uma campanha militar. Tal foi fornecido pelo Moulay Mohammed, que nos meses subsequentes à sua derrota desenvolveu uma campanha efectiva de guerrilha contra o seu tio. Quando a junção das tribos à sua causa falhou, o sultão deposto solicitou o apoio de Portugal. Em Novembro de 1577 ambos forjam uma aliança. Uma vez mais Dom Sebastião recorre a Espanha a solicitar o seu apoio, que finalmente embora relutante, Filipe concorda em fornecer. Espanha iria contribuir com 50 galés e 5000 soldados. Dom Sebastião foi também autorizado a recrutar tropas adicionais e comprar armamento nos domínios dos Habsburgos na Europa.[11]

 

Filipe, contudo, não estava muito convicto da ideia. Nos meses que se seguiram tentou demover o seu obstinado sobrinho de tal demanda.[12] Chegou a informar Don Sebastião da oferta de Abdelmalek para um pacto anti-Otomano, apontando para o facto de se poder persuadir o sultão Marroquino a fazer concessões territoriais, e nesse caso nenhuma expedição seria necessária. Don Sebastião respondeu que “preferiria ter Larache pela força que Fez pela negociação”.[13] Os agentes Espanhóis enviados a Marrocos foram na volta dirigidos a Lisboa reportando ao rei as dificuldades da empresa. Os nobres Portugueses também tentaram demover o seu rei. Duplamente conscientes dos problemas do passado, uma vez que não existia qualquer herdeiro e das ambições de Filipe, eles imploraram ao rei que confiasse a expedição a um subordinado. Os seus esforços foram em vão. O herói caprichoso entregou-se ao seu destino. Como o embaixador Espanhol em Lisboa, Don Juan de Silva escreveu numa carta a Filipe, “Nada pode ser feito. O rapaz (Sebastião) amua”.[14] Filipe observou secamente, “Bem, se ele tiver sucesso teremos um belo sobrinho, se falhar, um belo reino”.[15]

 

A expedição tomou forma persistentemente durante mais de um ano, tempo durante o qual Dom Sebastião laborou para a reunir e financiar. Enquanto os registos variam sobre o tamanho do exército recrutado, a maioria contabiliza forças Portuguesas e Aliadas em aproximadamente 17,000. Era uma verdadeira manta de retalhos, embora tal fosse comum nos exércitos da época. O seu núcleo era composto pela força de elite de 1,500 Aventuros, um género de voluntários cavalheirescos que serviam a expensas próprias, fazendo a guerra pela glória e pela paixão pelo ensino das artes bélicas. Da nata da nobreza das terras de Dom Sebastião vieram 1,100 Encubertados, o equivalente à cavalaria pesada. Outros 8,000 soldados de infantaria foram recrutados por todo Portugal e 5,800 soldados de tropas estrangeiras vieram da Alemanha e Castela. A completar esta amálgama estavam 600 soldados Italianos, financiados pelo Papado para uma invasão à Irlanda e divergidos do caminho pelo seu líder, um Inglês de nome Thomas Stukeley. As lanças, espadas e adagas eram as armas predominantes. Haviam poucos arcabuzes, devido em parte ao elevado custo das armas de fogo. A Artilharia consistia em 36 peças de vários calibres.[16]

 

O exército foi reunido em Lisboa entre o inverno e primavera de 1578. Os preparativos caóticos não fizeram nada para melhorar a coesão entre as forças. Os Italianos, debilmente abastecidos e vexados pelo seu apuro, efectuaram uma série de incursões pelo campo para pilhar comida. Os Alemães chegaram por mar vindos da Antuérpia, com muitos deles doentes. As tropas de infantaria Portuguesas, na sua maioria recrutadas das classes sociais mais baixas, muitos sob coação, mostravam pouca tendência para lutar. Os de Castela, por outro lado, lutavam com toda a gente. A violência entre os vários contingentes tornou-se tão séria que Dom Sebastião foi forçado a ameaçar os beligerantes com a pena capital. O exército necessitava de treino para se ornar numa força de combate. E disso viria a ter muito pouco. A 15 de Maio, um dia após a chegada dos Alemães, Dom Sebastião declarou abruptamente que os preparativos estavam completos. Mais umas quantas semanas de “completa desordem e confusão”, foram no entanto necessárias antes que o impaciente rei se pudesse fazer ao mar. A 24 de Junho de 1578, a frota Portuguesa ainda em falta de cerca de um quarto das suas forças e a maioria da sua bagagem, dirigiu-se para África.[17]

 

Mas contudo, nem toda a gente ia mal preparada. Enquanto que as fileiras rasas e brigantes falavam de fome e apreensão, os 1,100 carros contendo a bagagem dos nobres falavam de circunstâncias bem diferentes e de grandes expectativas. Dos preparativos da nobreza um contemporâneo escreveu “ Em vez de afiarem as espadas, bordam as roupas. Em vez de corpetes vestem-se com jaquetas adornadas a seda e ouro. Carregam-se com doces e finas comidas em vez de biscoitos e água. Competem par conseguirem taças de prata e incontáveis tendas, forradas a seda e cetim. Olham com admiração para o Duque de Barcelos (um menino de doze anos, que substituía o seu pai que estava doente), cujo séquito consistia em nada menos que 22 pavilhões. Em resumo, cada homem estava equipado como um rei.”

 

Tal pompa requeria imensa ajuda, por isso um segundo exército acompanhava as tropas - “ carroceiros, com uma infinitude de pajens, lacaios, servos, escravos, condutores de mulas e criadas para servir, bem como uma larga multidão de mulheres de prazer.” O Núncio Papal e dois bispos estavam à mão bem como dúzias de padres para converter a terra à Cristandade. Até o poeta real estava entre os exploradores desta campanha triunfal.[18] Ao todo, este segundo exército englobava pelo menos 9,000 pessoas. Para os privilegiados, assim como para o rei, isto não era uma guerra. Era uma aventura.

 

 

Talvez nada seja tão esclarecedor acerca da natureza caótica destes preparativos como a inexistência total de um plano táctico. Desde a partida, o seu único elemento era a tomada de Larache, presumivelmente para servir de base a futuras operações ou de alavanca negocial para regatear pocessões aos Saadidas. Para além disto, mais nenhuns detalhes eram conhecidos. A 6 de Julho, numa carta enviada ao seu rei, Don Juan de Silva, que tinha acompanhado a expedição escreveu, “É uma imensa miséria ver o rei partir, sem um único homem que saiba o que iremos fazer, pelo qual ficamos totalmente dependentes de um milagre. Que Deus o conceda!”.[19] Ainda a expedição mal tinha partido e já um sentimento de pessimismo profundo se abatia sobre as tropas.

 

A disciplina era frouxa desde o começo. A frota teve uma partida apressada após o que se dirigiu para África com escalas em Lagos e Cádis. Aí Dom Sebastião passou dez dias ingenuamente À espera que o prometido contingente Espanhol se materializasse (Filipe entretanto já tinha avisado o sobrinho que as dificuldades na Holanda tornavam impossível para ele honrar o seu compromisso). As tropas por sua vez tinham outras preocupações – nomeadamente gozar a hospitalidade local. A folia Portuguesa deixou pouca energia para a segurança e durante várias noites a frota ancorada passou sem ninguém de vigia – algo revelador para um agrupamento de 600 velas. Finalmente, os oficiais sentiram-se obrigados a enviar pequenas barcaças para guardar a embarcação real. Partindo de Cádis a 7 de Julho, a frota aportou em Tanger no dia seguinte. Aí o Moulay Mohammed e os seus seguidores se lhes juntaram. Em 11 de Julho, os Portugueses embarcaram o sultão deposto bem como a sua família e rumaram para Arzila.[20]

 

Arzila, um pequeno forte costeiro Mourisco a 30 quilómetros a norte de Larache, tinha sido recentemente entregue aos Portugueses por traição do Alcaide local. Aqui foram reabastecidos de água doce e aguardaram pelo remanescente da frota bem como pela bagagem que ainda vinha a caminho. Após passarem dois dias nos navios, a 14 de Julho o desembarque começou. Como a cidadela era demasiado pequena para alojar as tropas, resolveram acampar no exterior das muralhas. Mais doze dias haveriam de se passar antes dos últimos navios chegarem, tempo durante o qual se consumiriam boa parte dos preciosos mantimentos. Desta primeira parte da expedição, Dom Juan de Silva escreveu a Filipe, “Temos andado a queimar tempo há já dezoito dias porque sua Majestade não quis aguardar mais três ou quatro dias em Lisboa e assim levantar âncora com a totalidade da frota; se tivesse zarpado com todos os homens, passados quatro dias estaríamos em Larache.” [21]

 

Os preparativos de Abdelmalek, foram pelo contrário bastante ordeiros. Muito antes dos Portugueses desfraldarem as velas, já ele tinha iniciado a revitalização do exército Saadida , introduzindo métodos militares Turcos, incluindo a equipagem de muitas das suas tropas com armas de fogo e o seu exército com artilharia Europeia bem como de renegados para a manejar. [22] Informado pelos espiões dos preparativos Portugueses, o sultão rapidamente determinou como haveria de os defrontar. De forma a aumentar o seu exército de regulares, Adbelmalek emitiu uma oulema que enviou às tribos convocando-as para a jihad. Ordenou ao seu irmão mais novo, Moulay Ahmed, governador de Fez para que este assediasse os Portugueses onde quer que estes desembarcassem e para que rumasse a sudoeste para que juntassem ambas as forças próximo de Ksar el-Kebir. A 3 de Julho, enquanto os Portugueses celebravam em Cádis, Abdelmalek começou a deslocar-se para norte a partir de Marraquexe com um exército de 14 000 cavaleiros, 2 000 arcabuzeiros e 26 canhões. De Fez, o exército do Molay Ahmed com 22 000 cavaleiros e outros 5 500 arcabuzeiros prepararam-se para se lhes juntar.[23]

 

Em Arzila, os dias letárgicos de verão foram passando, com pouca energia a ser empregue em algo que não fosse festejar, rezar e às quezílias do costume. Duas mil tendas pejavam a planície à volta da cidadela, com nada mais do que as sentinelas como protecção. Dom Sebastião desdenhou que se tomassem mais medidas. A conduta do exército chegou ao ponto de tocar a comédia. Numa noite, um sentinela Italiano disparou sobre Tomas Stukeley quando este inspeccionava o perímetro. No pânico que se seguiu, milhares de soldados correram para a praia em direcção aos batéis que haviam deixado no porto. Don Juan de Silva escreveu, “Havia uma extrema confusão, nenhum homem sabia o que tinha de fazer ou para onde deveria ir, de tal modo que, se tivesse aparecido algum inimigo, teria provocado um terrível massacre sem que com isso sofresse qualquer baixa”. [24] Numa outra ocasião 2500 cavaleiros Marroquinos efectuaram um raide ao acampamento. Embora os escaramuçadores se tivessem retirado sem fazer grande dano, o caso quase se tornou num grande desastre quando Dom Sebastião chegando tardiamente ao acontecimento, se lançou numa perseguição a cavalo ao inimigo com apenas um companheiro a seu lado. Movidos pelo pânico, os nobres Portugueses partiram no rasto do Rei acabando todos exaustos e de mão a abanar já longe de Arzila. [25]

 

 

 

Com as pessoas e a bagagem por fim alojados, no dias 25 de Julho, Dom Sebastião convocou de forma abrupta o concelho de guerra. Nele propôs alterar o plano táctico. Em vez de continuarem com a frota até a sul da Larache, ele agora propunha que se dividissem as forças, enviando o seu almirante, Don Diego de Sousa bem como a frota para Larache, enquanto que ele próprio comandaria a o exército por terra num movimento flanqueador alargado pelo interior. Aí tomariam a cidadela de Ksar el-Kebir e assim que o fizessem deixariam Larache indefesa a um assalto por terra e por mar. O exército marcharia então para Larache sem oposição. Uma mostra de força pelo interior, continuou ele, oferecia ainda outras vantagens. Poderia mostrar que os Portugueses não se limitariam a tomar uma cidade costeira, o que por sua vez poderia levar à adesão de mais Marroquinos para a causa do Moulay Mohammed.

 

À medida que as dúzias de bajuladores e favoritos reais congratularam o rei, os poucos homens com experiência militar e conhecimento do país ficaram num silencio petrificador. Cautelosamente, um por um, foram levantando a voz contra o plano do rei. Eles apontavam que desse modo a sua principal arma, o apoio da frota, lhes seria negado, que o exército era demasiado pobre em cavalaria face à do inimigo, que a bagagem e os não-combatentes lhes iriam reduzir a mobilidade e que a marcha seria efectuada sob um terreno inóspito e sob um calor abrasador. Todos os seus apelos e argumentos caíram em orelhas moucas reais.[26] A visão de Dom Sebastião apelava para uma batalha terrestre decisiva, e a vitoria era um desfecho à muito antecipado. E assim o rei dispensou os seus adversários, pois tinha outros obstáculos com que se preocupar. Ele acreditava que as forças Marroquinas não eram em maior número que as suas próprias. E assim continuaria nesta crença, ignorando nos dias seguintes três relatórios de inteligência obtidos de viajantes vindos do sul – todos eles confirmando que o exército de Abdelmalek era composto por 50,000 a 70,000, que aguardavam pacientemente ao longo da sua linha de avanço previsível.[27] Dom Sebastião propôs o dia 29 de Julho como a data para a partida.

 

Desconhecido da desordem Portuguesa, enquanto hesitavam em Arzila, é que aos seus destinos estavam no horizonte. Logo após a partida de Marraquexe com o seu exército, Abdelmalek ficou gravemente doente. Circulavam rumores dizendo que tinha sido envenenado. Embora houvesse quem dissesse que teria consumido leite inquinado. Fosse qual fosse a causa, o sultão tanto se debruçou a vomitar que ficou tão fraco que teve de ser transportado durante a maior parte do tempo numa liteira. Apesar do seu sofrimento, Abdelmalek fez ainda um derradeiro esforço diplomático, enquanto se preparava para o pior. A 22 de Julho, escreveu uma carta a Dom Sebastião perguntando, “...que razões vos motivarão a demandar contra nós uma guerra tão injusta, especialmente quando Deus todo Poderoso parece abominar tais atitudes quando tomadas sem sentido?”. Após relembrar o rei Português da sua aliança com o Sultão Turco, Abdelmalek rematou com uma oferta de treze léguas de terreno desde a costa para o interior, para que assim construíssem os fortes que precisassem e na área circundante pudessem cultivar tudo o que fosse necessário...”. Ofereceu ainda a Dom Sebastião uma cidade costeira à sua escolha. Dom Sebastião recusou esta oferta tomando-a como um sinal de fraqueza.[28]

 

Esses dias desperdiçados em Arzila, delapidaram não só grandemente as provisões como também a moral das forças Cristãs. Esta, estava de facto a atingir o seu nadir na véspera da marcha que se seguiu. Na sua última carta para Filipe, Don Juan de Silva escreveu,” Não consigo descrever a Vossa Majestade as dificuldades que nos assolam. Mas temos que considerar quão poucos somos para uma aventura como esta; os soldados são absolutamente inexperientes, indisciplinados, fracamente comandados e sem nenhum líder para além do Rei, que, pela sua excessiva temeridade retirou ao exército qualquer coragem que este tivesse substituindo-a por medo. Finalmente, nem um só oficial se aventura a contradizer o Rei sendo que todos estão certos de que este os está a conduzir para uma morte certa.”[29]

 

O exército Português abandonou finalmente Arzila, numa marcha desengonçada e barulhenta no dia 29 de Julho. Ficaram esmorecidos quase de imediato. O imenso comboio de bagagem vacilava ao longo do terreno rochoso e ondulante. Cada ribeiro seco transformou-se num grande obstáculo. Homens vestidos com lã e armadura pesada, coziam com as temperaturas de 40ºC. Mesmo os nobres e o seu Rei, transportados nas suas carruagens decoradas, deverão ter sentido o desconforto geral. O mais urgente era a falta de provisões. Como era esperado que a marcha para Larache durasse apenas seis dias, a rações foram atribuídas em conformidade com essa duração, ficando a maioria das provisões nos navios da frota. Cada soldado recebeu 9 arratéis de biscoito, 1 libra e meia de queijo e 3 quartilhos de vinho ( nas unidades de hoje a ração diária era equivalente a 690 gr de pão, 115 gr de queijo e ¼ de litro de vinho) – uma quantidade manifestamente insuficiente para os rigores da marcha. Muitos dos soldado consumiram metade das suas rações no primeiro dia de marcha. Na noite de 30 de Julho a situação já era tão séria que Dom Sebastião convocou o concelho de guerra para determinar o que deveria ser feito. Muito para espanto de todos, o Rei aceitou relutantemente a recomendação do Concelho para que se regressa-se a Arzila.[30] Uma marcha de uns escassos dez quilómetros foi suficiente para deter a poderosa invasão de Dom Sebastião.

 

De um modo semelhante, o destino interveio. O destacamento de cavalaria enviado para avisar a frota do regresso do exército, encontrou o porto vazio. Don Diego de Sousa executou fielmente as ordens do Rei de navegar para Larache. Em lugar da sua frota os Portugueses encontraram o capitão espanhol Francisco Aldaña com um contingente de 500 Castelhanos que tinham acabado de chegar para se juntarem à expedição. O poder de combate extra que traziam foi largamente ofuscado pelo problema de abastecimento que representavam. O seu impacto mais mediato foi contudo o efeito de restauro da moral Real. Juntando-se ao exército nessa noite, a aparição deste reforço e a partida da frota, foram suficientes para induzir Dom Sebastião a manter o rumo.[31] O exército continuaria a marcha para Ksar el-Kebir.

 

Abdelmalek com o Moulay Ahmed e um exército de 50 000 soldados aguardavam-nos em Suk el-Kamis a 10 quilómetros a sul de Ksar el-Kebir. O estado do Sultão piorou incessantemente deixando-o completamente prostrado na cama, embora continuasse a comandar o exército. Abdelmalek ainda procurava evitar uma grande confrontação, mas procurava assegurar o seu sucesso em caso de tal chegar a acontecer. Nesse sentido, os Marroquinos puseram em prática uma táctica de “terra queimada”, tapando poços, bloqueando fontes, esvaziando celeiros e destruindo tudo o que pudesse ter utilidade para os invasores.[32] Esta táctica rapidamente atingiu os objectivos. Após mais dois dias de marcha, a 2 de Agosto, o exército Português estava à beira de atingir o limite da sua resistência. Nessa noite, outro Concelho de Guerra resultou noutra alteração de planos. Foi decidido que se deveria virar para oeste, antes de Ksar el-Kebir, atravessar o rio Loukkos no baixio de Mechara en-Nedjma, e daí seguir o rio para Larache.

 

Foi um erro terrível. Dadas as circunstâncias de grande fragilidade do exército , uma marcha imediata para Larache teria sido a única decisão plausível. Contudo, descendo do terreno elevado e atravessando o rio Loukkos, abdicaram da protecção relativa que estes factores proporcionavam e expuseram os Portugueses a ataques. Em acréscimo, para chegarem ao rio Loukkos, teriam de atravessar um dos seus afluentes, o Makhazen - que chegava a ter 50 metros de largura, dotado de margens íngremes e com águas de maré traiçoeiras. A sul do Loukkos, as linhas de retirada dos Portugueses estariam cortadas não apenas por um, mas por dois grandes obstáculos.

 

No dia seguinte, a 3 de Agosto, os Portugueses chegaram ao rio Makhazen. Encontrando a ponte que tencionavam usar ocupada pelo inimigo, foram atravessar o rio num baixio cinco quilómetros a jusante. Dom Sebastião ordenou que se montasse acampamento a sul do local onde tinham atravessado rio num vasto e descampado beco-sem-saída que era a confluência entre os rios Makhazen e Loukkos. O Rei seleccionou o terreno por o achar adequado a “ lindíssimas cargas de cavalaria e altos feitos de armas”. As suas tropas estavam dificilmente capazes de alguma dessas coisas. O exército tinha percorrido menos de 40 quilómetros desde a partida de Arzila, e o seu percurso tinha ficado pejado de pertences, quer supérfluos quer essenciais – bagagens, armaduras e até muitos dos canhões foram sendo deixados para trás. Mesmo quando assentaram acampamento, a artilharia que ainda restava ficou retida na margem norte do rio. As águas do Makhazen subiram enquanto atravessavam e o baixio mais próximo do Loukkos distava 5 quilómetros. Quando Adbelmalek soube que Dom Sebastião tinha abandonado a sua posição estratégica por um campo em planície aberta ficou espantado. “ Então os Portugueses estão verdadeiramente perdidos!” terá exclamado.[33] Avaliando que tudo estava a seu favor, o Sultão moveu as suas tropas para norte para bloquear a aproximação ao baixio de Mechara en-Nedjma.

 

Nessa noite, os Portugueses reunirão em mais um sinistro Concelho de Guerra. A situação difícil em que o exército se encontrava era aparente até para Dom Sebastião. Os Marroquinos, acampavam agora totalmente visíveis, mostrando-se muito superiores em número. O avanço estava barrado, a retirada era precária e as tropas mal se aguentavam fisicamente. Muitos tinham comido pouco ou nada nos últimos dias. A discussão foi, por uma vez, franca. A decisão restringiu-se a saber se se deveria iniciar a batalha ou não. Muitos aconselharam a defesa, entrincheirar-se com o rio a proteger o flanco, baseando-se na infantaria e nas lanças para deter a cavalaria superior do inimigo. Mesmo assim ouve outros, o Capitão Aldaña acima de tudo, que argumentaram que o exército não tinha condições para aguentar um cerco e deveria forçar uma saída. Pressionaram o Rei para atacar de madrugada, tentando apanhar o inimigo desprevenido. Finalmente o Moulay Mohammed falou. Aconselhou o rei a adiar o ataque para mais tarde durante o dia. Espiões tinham reportado que o seu tio estava à beira da morte e a morte de sultão em tal ocasião poderia minar a moral do exército Saadida. Caso falhasse este golpe de sorte, um ataque tardio ofereceria a possibilidade de uma retirada nocturna caso viesse a ser necessária. Dom Sebastião, nunca inclinado a receber conselhos, não seria desta que os receberia, ainda por cima considerando de quem vinham. O Rei ordenou um ataque ao raiar da aurora.[34]

 

Enquanto os Portugueses boliçavam ao longo do Makhazen, o Sultão dispôs as suas forças em forma de quarto crescente à sua frente. O terreno no vale de Loukkos favorecia de facto o uso dos cavalos, como Dom Sebastião tinha realçado. A formação em crescente, que o Sultão tinha aprendido com os Turcos, oferecia aos Marroquinos a possibilidade de flanquear e envolver os Cristãos, antes que estes pudessem lançar um ataque frontal. Dispostos na frente da zona central da formação Muçulmana estavam os 34 canhões do Sultão, instalados em suportes e camuflados com ramos de árvores. Atrás das peças, organizada em três linhas estava a infantaria. As melhores tropas ocupavam as primeiras duas linhas, 3 000 Andaluzes seguidos de igual número de renegados de sangue principalmente Europeu e finalmente 5 000 soldados Mouros e Árabes incluindo 3 000 arcabuzeiros montados. A restante cavalaria, chegando a 25 000 unidades, comandada pelo Moulay Ahmed, foi mantida de reserva atrás da infantaria, pronta a atacar em qualquer direcção.[35]

 

Com as tropas em posição, nessa tarde o Sultão levantou-se do seu leito para falar ao seu exército. Era a primeira ocasião em que o viam em três semanas. Numa magnífica montada branca, Abdelmalek foi transportado sob o toldo real de cetim e ouro, rodeado pela sua guarda pessoal de 200 e precedido por dúzias de trombeteiro e tocadores de tambor. Antes deles, cavaleiros transportavam cinco estandartes verdes sagrados do Islão. Toda a cerimónia amplificava a emoção intensa das circunstâncias. Quanto Abdelmalek se aproximou, as suas tropas souberam que estavam perante um homem moribundo. Enquanto as vestes esplêndidas do sultão ocultavam a faixas que o prendiam à cela, nada podia camuflar a pálida e ressequida face. “Oponham-se a eles (aos Portugueses) com o vosso valor”, exortou ele com voz firme, “pois vós lutais na mais nobre das causas: a qual previne a mágoa às vossas famílias, mantém a liberdade, conserva a vida, adquire a honra e vivendo ou morrendo conforme vier a acontecer, conduz ao paraíso!” A noite calma, apenas interrompida pelo relinchar ocasional dos cavalos, irrompeu num coro: “Allah Akbar! Yahya l-Malik! Yahya Islam!” [36]

 

A manhã de 4 de Agosto de 1578 encontrou ambos os lados sem pressa para lutar. Os Marroquinos aguardaram enquanto os Portugueses rebocavam a artilharia remanescente através do rio Makhazen e instalavam as suas forças. Quando por fim Dom Sebastião emergiu da sua tenda, o sol já ia alto num céu sem nuvens. O rei montou o cavalo preto que os pajens haviam mantido em prontidão desde madrugada. Anunciou que daria ordem para atacar, acrescentando que o exército apenas deveria responder à sua própria voz de comando. A seguir Dom Sebastião juntou-se aos nobres. Os bispos de Coimbra e do Porto conduziram uma bênção solene, onde foi agradecida a Deus a vitória que se deveria seguir. Entre as fileiras, dúzias de padres circulavam entre os veteranos pensativos e os assustados recrutas, oferecendo um apelo mais fraterno. Ás dez horas da manhã, as tropas Portuguesas iniciaram o avanço em direcção ao Loukkos e ao exército Marroquino que os aguardava.[37]

 

Obrigados a terem de defender os não combatentes, e parcos em cavalaria, o exército Português organizou-se para o ataque numa disposição de um vasto quadrado. A pouca artilharia disponível (talvez tão pouca quanto seis peças!) foi instalada na frente onde poderia vir a ter algum efeito na carga inicial. A seguir encontrava-se a guarda avançada, consistindo nas poucas tropas fiáveis – os regimentos Italianos e Castelhanos à esquerda, os Aventuros ao centro e os Alemães à direita. Apesar da formação em quadrado depender fortemente do apoio mútuo entre lanceiros e arcabuzeiros, a defesa nesta altura crítica eram quase totalmente compostas apenas por lanceiros. Os pequenos grupos de arcabuzeiros defendiam os flancos de cada regimento. A cavalaria foi instalada na frente de ambos os flancos, ficando o maior contingente de cerca de 1000 cavaleiros à esquerda sob comando de Dom Sebastião. À direita Dom Duarte de Meneses e o Duque de Aveiro comandavam os seus destacamentos de 500 cavaleiros cada, conjuntamente com uma terceira força de 600 Cavaleiros Mouros e 200 arcabuzeiros sob comando do Moulay Mohammed. O corpo principal compunha-se por cinco regimentos que formavam os lados esquerdo, direito e retaguarda do quadrado. Cada um destes flancos era defendido por um regimento de infantaria Portuguesa. Os soldados estavam escudados de cargas de cavalaria por duas longas linhas formadas pelas carroças e carros atrelados, reforçados por alguns arcabuzeiros formados em coluna em ambos os lados do quadrado. A retaguarda consistia em três regimentos, dois compostos principalmente por Aventuros inexperientes a flanquear um regimento central de arcabuzeiros. No interior do quadrado agitavam-se os não combatentes responsáveis pelo comboio de bagagem – uma orda caótica de homens, bestas e atrelados que deve ter coberto vários hectares. Os 500 castelhanos desarmados estavam algures entre eles.[38] Metade da força e a maioria dos arcabuzeiros foram destinados a funções puramente defensivas. O exército não podia poupar nenhuma reserva.

 

Uma hora de marcha ansiosa colocou os exército ao alcance e às 11 horas horas da manhã a batalha começou com uma salva da artilharia Marroquina. A cavalaria Mourisca apareceu de súbito das pregas do terreno, circundando os Portugueses. Estes tinham marchado para o coração do quarto crescente inimigo. Sem se perturbar, Dom Sebastião deu ordem de ataque à guarda avançada. Haveria de ser a última ordem que deu ao exército. Gritos de “Avis e Cristo” e “Bismillah” encheram o ar à medida que as infantarias Cristã e Moura surgiam através da sua artilharia em direcção uma à outra. A reputação impetuosa dos Aventuros não falhou ao seu exército, enquanto estes carregavam sobre os Andaluzes com gosto. Os arcabuzeiros Muçulmanos descarregaram, esburacando as fileiras, mas a lentidão da recarga permitiu as Portugueses cerrar fileiras. Os lanceiros então entraram em acção desalojando os Muçulmanos das suas posições gerando o caos no centro da sua formação.[39]

 

Por momentos a vitória pareceu estar ao alcance. Então, Pedro de Lopes, o sargento mor dos Aventuros, emitiu o comando fatal, “Parem, Parem, Voltem para trás!”. A carga da guarda avançada tinha aberto um espaço grande entre este regimento e o corpo principal, a partir do qual a cavalaria inimiga se estava a infiltrar. Receando ver-se cercado e isolado do restante contingente, Lopes deu a ordem de paragem mesmo quando os seus homens estavam prestes a tomar a artilharia inimiga. Os contingentes Italiano, Castelhano e Germânico que se dirigiam ao centro, também hesitaram e depois pararam. Num instante, o momentum do ataque, e com ele a vantagem conferida pelos lanceiros, estava perdido. Os renegados e as reservas Mouras preencheram as baixas das fileiras Andaluzas restantes. A guarda avançada Cristã, cercada e grandemente ultrapassada em números, cedeu terreno e a sua artilharia foi tomada.[40]

 

Ao ver a situação gravosa em que se encontrava a guarda avançada, o Duque de Aveiro lançou um ataque arrojado contra a direita Marroquina. Conduzindo os contingentes de Dom Duarte de Meneses e do Moulay Mohammed, o duque lançou uma tal carga de cavalaria que levou uma grande quantidade de cavaleiros inimigos a sumirem do campo de batalha. Muitos destes não pararam até chegarem a Fez ( a mais de 100 km de distância). Reagrupando os seus homens o duque levou-os pessoalmente a atacar o flanco esquerdo do exército principal inimigo que na altura se encontrava exposto. A infantaria Moura, que ainda estava a reagrupar da carga inicial, foi lançada para a desordem e dois dos cinco estandartes do Sultão caíram para os Portugueses. “Acreditem em mim”, escreveu o médico judeu de Abdelmalek, “pensávamos que tudo estava perdido”. No entanto, mais uma vez o momentum foi perdido. Os ataques Cristãos eram descoordenados e acima de tudo, não havia reservas para explorar os sucessos. A cavalaria do Duque de Aveiro foi-se dispersando e antes que pudesse reagrupar a cavalaria Moura de reserva contra-atacou. Os cavaleiros Portugueses que não foram rodeados e subjugados foram perseguidos erraticamente até às suas próprias linhas, tropeçando e semeando o caos entre a infantaria germânica já de si exausta.

 

O mesmo se passou com o flanco esquerdo. À medida que a cavalaria do duque de Aveiro era repelida, os seu camaradas do flanco esquerdo atacaram a cavalaria Moura que estava à sua frente. Mais uma vez o sucesso inicial foi deitado por terra após não conseguirem reagrupar a tempo de se defenderem do contra-ataque levado a cabo pelas reservas Mouras. Também neste caso foram perseguidos até às suas próprias fileiras , tendo desta vez atropelado os regimentos Italiano e Castelhano.[41] Com esta acção a cavalaria Portuguesa foi efectivamente destruída. A iniciativa passou então completamente para o lado Marroquino.

 

O exemplo dado por Dom Sebastião, mais do que o comando, teria de fornecer a margem necessária para a vitória. Nesse dia, estava determinado a provar que a coragem física não era um dos seus muitos defeitos. Na periferia da batalha, o rei deixou o grupo de cavalaria do flanco esquerdo para se juntar à luta que estava a ser levada a cabo pela guarda avançada. A partir desse momento, o seu exército ficou sem direcção, à medida que os seus comandantes abdicavam para a luta. Se ele pouco fez para assegurar o sucesso do exército, quando a maré virou, Dom Sebastião lutou como um leão para o tentar salvar da aniquilação. O jovem rei lutou com uma coragem fanática, acudindo aqui e além, organizando reforços e conduzindo cargas de cavalaria numa tentativa fútil de manter o quadrado coeso. Mesmo ferido num braço e tendo já três das suas montadas sido atingidas, Dom Sebastião estava implacável. Foi dito que nesse dia ele terá morto tantos inimigos como qualquer outro soldado da frente.[42]

 

A cavalaria Mourisca tinha por essa altura cercado toda a formação Cristã, começando a penetrar as linhas de carroças atacando os desafortunados Portugueses. Alguns lutaram pela própria vida, outros fugiram para se esconderem entre os não combatentes. Muitos largaram as armas e imploraram por misericórdia, apenas para se verem trespassados pelas cimitarras. O pânico instalou-se quando o quadrado de comprimiu para o próprio centro, Não havia sitio para sair nem para homens nem para as bestas. Uma testemunha ocular escreveu, “Este exército que ocupava uma área com 3 milhas de diâmetro, foi num instante consumido pela espada, e tanto se apertou pelo medo, que caberia num pequeno quarto.”[43]

 

 

Mesmo assim, nesta hora de desespero, brilhou ainda um súbito vislumbre de esperança. Um nobre lutando pelo caminho para se juntar ao seu rei, gritou, “Coragem, Coragem! O sultão está morto!”. O que era verdade. Adbelmalek, na sua fúria por ver as suas tropas rechaçadas pela carga do duque de Aveiro, esforçou-se para sair do leito numa tentativa de estancar a maré. O último esforço do Sultão esvaiu-se , quando este era montado no seu cavalo, desfalecendo para os braços dos seus ajudantes. Trinta minutos depois o Sultão estava morto. Felizmente, para os Marroquinos, o Sultão tinha antecipado esta possibilidade. De acordo com instruções dadas anteriormente, o reino e o comando passou integralmente para o Moulay Ahmed. A morte do Sultão deveria ser mantida em segredo até ao fim da batalha. Mesmo assim, as novas da morte de Abdelmalek chegaram aos ouvidos de ambos os exércitos, embora demasiado tarde para influenciar o desfecho da batalha.

 

O exército Português, atacado fortemente por todos os lados começou a desintegrar-se. “Nem um de nós irá passar de hoje” vaticinou o Capitão Aldaña. Com a falta da guarda avançada os flancos foram esmagados, lutaram de forma galante mas com as forças a falharem. Por esta altura, já estavam a lutar há horas e sem se vislumbrar nenhuma paragem. A maioria das lanças havia sido perdida ou quebrada e as poucas armas de fogo eram insuficientes para manter o inimigo à distância. Os números dos Muçulmanos já haviam feito mudar a maré do ataque e agora a sua superioridade numérica fazia-se sentir cruelmente. Os seus arcabuzeiros montados investiam em vagas sucessivas, aproximando-se até quase dispararem à queima roupa após o que se retiravam para recarregar. Os Italianos e Castelhanos, estocavam os seus atormentadores com adagas, matando centenas, mas mesmo assim o Muçulmanos continuavam a vir. O corpo principal, agora uma massa amorfa de homens, bestas e carga, dizimada por fogo incessante de ambos os lados, estava paralisado com medo. A retaguarda foi completamente dissolvida. Uma tentativa de reforço liderada por Dom Sebastião À frente de 500 soldados chegou tarde de mais para restaurar a situação.

 

A batalha tornou-se então numa matança, a partir da qual poucos tiveram oportunidade de escapar. Moulay Mohammed foi dos poucos a conseguir fazê-lo. Nunca entusiasmado com o plano de Dom Sebastião, foi rápido a descomprometer-se quando viu a situação a deteriorar-se. Após a cavalaria inimiga ter suplantado o efectivo do Duque de Aveiro e o seu próprio, o Molay Mohammed conjuntamente com uma mão cheia de seguidores mais próximos tentaram salvar-se fugindo para trás na direcção do Makhazen, presumivelmente pelo mesmo baixio que os Portugueses tinham utilizado no dia anterior. Contudo, as águas de maré estavam altas por volta do meio dia e o Sultão deposto não sabia nadar. Derrubado do cavalo durante a travessia, ter-se-á afogado nas correntes repentinas.

 

 

O fim estava próximo. Um por um, os magotes de homens que antes eram regimentos sucumbiram à matança incessante. Os Aventuros, depois os Italianos e a seguir os Castelhanos foram sendo subjugados. Algures entre a milícia sobrevivia um punhado de Alemães e um pequeno grupo que restava das tropas do Duque de Aveiro, incluindo o Duque, Dom Sebastião e Dom Duarte de Meneses. Os nobres imploraram ao rei que se salvasse. “Que recursos nos restam?” um terá perguntado. “O céu, caso o tenhamos merecido através dos nosso feitos!” o rei respondeu, e carregou uma vez mais sobre o frenesim.[44] Em minutos estava morto. O golpe de misericórdia veio cruelmente e de um quadrante inesperado. Um enxame de irregulares Árabes que se haviam mantido na periferia da batalha, impacientes para se juntarem À pilhagem que por essa altura esta a começar, interveio apressando o fim. Caíram sobre os exaustos e ensanguentados sobreviventes e com os seus toscos instrumentos os atingiram e foram derrubando. Entre os últimos a cair estavam o Duque de Aveiro e Thomas Stukeley. Eram 5 horas da tarde quando a batalha terminou. Para os milhares de não-combatentes, o horror estava apenas a começar.

 

A Batalha dos Três Reis, conforme descrita pelos cronistas Europeus para os monarcas caídos, não requeria quaisquer floreados dramáticos para os Portugueses. Numa única tarde a fina flor da nação tinha sido eliminada. Entre os cerca de 8 000 mortos estava a elite militar de Portugal. Praticamente nenhuma família nobre em Portugal ficou intocada pela tragédia. Das 26 000 almas, menos de 100 lograram escapar à carnificina e terão conseguido chegar a Ceuta ou a Tanger. Era um custo humano devastador que poderia ter sido bem pior caso os Marroquinos tivessem adoptado o método Turco de lidar com os prisioneiros. Em vez disso seguiram a sua antiga tradição económica de negociarem os prisioneiros mediante resgate. Muitos dos 18 000 prisioneiros entre os quais Dom Juan de Silva e o Duque de Barcelos viriam a ser repatriados. As baixas Marroquinas foram contabilizadas como sendo provavelmente na ordem dos 5 000 mortos e muitos mais feridos.[45] Nenhuma das suas perdas seria contudo mais trágica do que a de Abdelmalek, cuja morte heróica aos 35 anos privou as suas gentes de uma liderança capaz que há muito ansiavam.

 

Para Portugal as consequências da derrota foram imediatas e com um vasto alcance. Não só a sua era de poder terminou abruptamente, como a sua própria existência como país ficou periclitante. Um escritor contemporâneo escreveu de Lisboa, “ Não consigais imaginar quão grandes foram as lamentações, o desespero e o luto, não apenas nesta cidade como em todas as terras. Os homens andam como que atordoados. O carpir das mulheres era tão alto que podia ser comparado com o que foi ouvido após a tomada da Antuérpia. É uma horrível situação terem perdido num só dia o Rei, os seus maridos os seus filhos... Mas aquilo que é verdadeiramente terrível é que este reino cairá agora sob o jugo Espanhol, que de tudo será o mais difícil de suportar.”[46]

 

Estas palavras foram proféticas. A coroa passou para o já idoso Cardeal Henrique, que faleceu em 1580 sem deixar herdeiro. O infeliz país, despojado das riquezas, sem liderança e sem exército, estava à mercê de Espanha. Nesse ano, Filipe II proclamou o seu intento, o qual o Duque de Alba e o exército Espanhol trataram de obrigar. A coroa passou assim para Espanha num casamento tumultuoso que haveria durar até 1640.

 

Tal como Dom Quixote e os seus moinhos, Dom Sebastião haveria de alcançar a imortalidade de forma improvável, para quem sofreu um derrota. Do interior do território Português ocupado surgiu uma forma de culto messiânico a que se poderá chamar “Sebastianismo” entre aqueles que preferiam acreditar que o rei não havia morrido e que um dia iria regressar para libertar o país da Espanha. Enquanto as rebeliões inspiradas pela ideia falharam, a lenda continuou. Ainda hoje, o Sebastianismo sobrevive como ideal nostálgico para algo inatingível.

 

Para Marrocos, a ideia da vitória foi mais duradoura do que o seu resultado. Problemas de sucessão e rivalidades tribais impediram os Saadidas de traduzirem este sucesso para uma dinastia duradoura. Moulay Ahmed, que ficou para a história como “El Mansour” ( o Vitorioso) seria o último dos sultões Saadidas. Nos séculos que se seguiram, a luta de Marrocos contra o domínio estrangeiro haveria de continuar. Enquanto a luta nem sempre foi sucedida, foi a partir deste ensaio que os Marroquinos forjaram a sua identidade nacional.

 

Este texto pertence ao autor:
Comer Plummer , um Oficial do Exército dos EUA. Pode encontrar o texto original em:

http://www.militaryhistoryonline.com/medieval/articles/apocalypsethen.aspx#

 

Foi traduzido por mim.

 

 

Notas à tradução:

 

1 - O autor designou o Sultão: Abu Marwan Abd al-Malik I Saadi – pela tradução ocidentalizada de Abdelmalek.

 

2 – Arzila é hoje denominada em Marrocos por Asilah.

 

3 – O rio Loukkos é hoje denominado em Marrocos por Loukos.

 

4 – O rio Makhazen é hoje denominado em Marrocos por Mekhazen.

 

5 - O cognome indicado pelo autor para o Molay Ahmed - (o Vitorioso), é encontrado noutras fontes como (o Dourado).

publicado por eurekaeureka às 23:26
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